Breve reflexão sobre a fraude sexual a luz do artigo 187 o do código penal Angolano

 

Autora: Orlanda Paulo, Advogada

BREVE REFLEXÃO, SOBRE A FRAUDE SEXUAL À LUZ DO ARTIGO 187.º DO CÓDIGO PENAL ANGOLANO

 

I – INTRODUÇÃO

 A motivação para esta breve reflexão, surge pelas constantes lamúrias circunstanciais de relacionamentos frustrados, dos quais nutriam alguma expectativa à vítima. Vezes há em que a vítima, é colocada e abandonada a “deus dará” porque o agente, simplesmente atingiu o seu objetivo primordial estranho a vítima. O pior acontece, quando desta relação surge uma gestação e nasce um filho, que por sua vez nem se quer vem a conhecer o pai, pelo facto de, por vezes negar a paternidade, ou ainda, alegar ter sua família devidamente constituída. Ao olharmos para este fenómeno social, não deixaremos de incluir o gênero masculino. É sabido que, a vítima pode ser mulher ou homem. Não é de estranhar, ouvir relatos de homens que foram vítimas de mulheres para atingir certos objetivos. É certo que, a proliferação de lamúrias nas redes sociais, nos trazem uma sensação de que a sociedade “quiça”, por influência da globalização e da abertura mal compreendida do empoderamento, associado ao imediatismo, muitas das situações que por sua natureza eram atribuídas ao gênero masculino, hoje não podemos olhar simplesmente neste sentido, a sociedade de certa forma evoluiu e está em constante evolução positiva e negativa. É neste prisma e com este espírito que queremos trazer a nossa reflexão do ponto de vista legal, com um olhar atento a dogmática da criminalidade sexual que tem sido extraordinariamente mutante e para a nossa realidade jurídico-penal, nos cingiremos concretamente ao crime de fraude sexual, dando primazia ao paradigma social que verificamos no dia-a-dia e suas consequências, no que diz respeito a responsabilidade e responsabilização individual do agente, quer seja homem ou mulher, não deixando de parte a figura da vítima e quais os meios de defesa. Queremos chamar a colação outras nuances subjacentes a fraude sexual. Esta reflexão tem um pendor pedagógico e de prevenção sobre a pratica do crime de fraude sexual.

II – CONCEITO

Fraude em sentido amplo, é todo acto que se traduz num conjunto de condutas, tais como ocultação de factos para obtenção indevida de benefícios ou vantagens. Este acto, tem inicialmente a intenção de enganar ou prejudicar alguém; a fraude acontece em muitas áreas da vida diária, podendo ser crime ou acto ilegal praticado por alguém com a finalidade de obter alguma vantagem ou ilusão em relação a vítima. A pessoa que comete acções fraudulentas tem sempre ou “quase sempre”, a intenção de obter vantagens sobre as outras de forma injusta. No âmbito do direito penal, a fraude é um crime que consiste em qualquer acto ilegal de iludir terceiros com o intuito de prejudicá-los, se traduz num esquema ilícito ou de má fé criado para obter ganhos pessoais.

Seguramente, toda conduta que atente gravemente contra a liberdade da vontade do sujeito, através da sua indução em erro é efetivamente criminalizada; pois, a liberdade sexual deve ser protegida contra quaisquer actos considerados inaceitáveis e que ferem a dignidade da pessoa humana ou seja; que fere direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados.

Neste sentido, o Código Penal Angolano, nos brinda com um conceito muito objetivo. Olhando para o espírito da norma, podemos extrair que a fraude sexual, é o acto praticado por alguém que se aproveita de erro de outra pessoa ou que induza outra pessoa em erro sobre a sua identidade pessoal e assim praticar com ela acto sexual. O que veremos a seguir, quanto ao enquadramento jurídico do crime em análise.

III – ENQUADRAMENTO JURÍDICO

A fraude sexual, vista no prisma de ser uma conduta que atenta gravemente contra a liberdade da vontade do sujeito, através da sua indução em erro, encontra o seu acolhimento legal, no Código Penal Angolano. Isto é, no Capítulo IV (Crimes Sexuais), Secção II, (Crimes Contra a Liberdade Sexual), especificamente, no artigo 187.º, com a epígrafe: “Fraude Sexual”.

Como não podia deixar de ser e conforme acima dito, esta norma legal, prevê e sanciona o tipo de crime, dispondo o seguinte:

“Quem se aproveitar de erro de outra pessoa ou a induzir em erro sobre a sua identidade pessoal e, assim, praticar com ela acto sexual, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com a de multa até 360 dias; se houver penetração, a pena é de prisão de 6 meses a 4 anos”.

Importa referir que, por se tratar de um crime semi-público, o procedimento criminal depende de queixa, conforme previsto no artigo 200.º do Código Penal, salvo se do crime resultar a morte da vítima ou se o crime for praticado contra menor de 16 anos e o agente tiver legitimidade para exercer o direito de queixa ou tiver a vítima a seu cargo. Quando o crime for praticado contra menor de 16 anos, o Ministério Público pode exercer acção penal, independentemente de queixa, sempre que, no interesse da vítima, se impuser esse exercício.

O procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, antes do ofendido perfazer 25 anos e idade, conforme previsto no n.º 4 do artigo 200.º do Código Penal Angolano.

Ademais, quando o agente for condenado por este crime em análise, na pena de prisão anteriormente descrita, acessoriamente, poderá ser inibido atenta a gravidade do facto e a sua conexão com a função por ele exercida, do exercício da autoridade paternal (quando se tratar de progenitor), da tutela ou da curatela (quando se tratar daquele que tem a seu cargo o dever/obrigação de assistência e cuidado de menores cujos pais não existam, sejam incógnitos ou estejam impedidos ou inibidos do exercício do poder paternal e de maiores que sejam interditos do exercício dos seus direitos por serem declarado inabilitado em virtude de anomalia psíquica, surdo-mudo ou cego, ou que abuse de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, entre outros) por um período de 3 a 15 anos, nos termos do artigo 201.º do Código Penal.

De igual modo, em relação a legitimidade para apresentar a queixa, salvo disposição em contrário, cabe ao ofendido considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence sucessivamente às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas tiver comparticipado no crime; nomeadamente: ao cônjuge sobrevivo ou pessoa com que o ofendido vivesse em condições análogas às de cônjuges, aos descendentes e aos ascendentes, aos irmãos e seus descendentes.

IV – APROVEITAMENTO DO ERRO DA VÍTIMA

O que significaria então o aproveitamento de erro de outra pessoa ou a induzir em erro sobre a sua identidade pessoal? Atenta a explicação dada pelo Dr. Mota Liz, na qualidade de Membro da Comissão da Reforma da Justiça e do Direito, à imprensa (Jornal de Angola, vd. última actualização online, de 13 de Novembro de 2017), quando se referia a agravação das penas para os crimes sexuais, dizia o seguinte:

“A fraude sexual vem também prevista no Código e pune aquelas situações em que alguém parece ser uma pessoa que não é, para conseguir conquistar alguém, utilizando a fraude para poder convencer a outra pessoa a ceder aos seus caprichos sexuais”.

Deste apontamento, temos de reter o facto de que, a sexualidade envolve, o que de mais íntimo tem o ser humano e não deve ser objeto de caprichos desordenados.

 Segundo doutrina[1], o aproveitamento pelo agente do crime de uma situação de erro sobre o qual induziu a vítima, a vítima acredita num facto relativo à identidade pessoal do agente que não corresponde à realidade, o agente do crime sabia desse erro em que incorreu a vítima, ou configura como possível, conformando-se, e, aproveitando-se dessa visão distorcida da realidade, pratica actos sexuais. O erro terá de ser determinante da vontade da vítima no sentido de que não estando enganada, nunca praticaria actos sexuais de relevo, ou pelo menos, os actos sexuais de relevo que praticou.

A construção da mentira pode partir do próprio agente do crime com o objetivo de convencer a vítima a praticar actos sexuais de relevo consigo, ou poderá esse aproveitamento surgir apenas posteriormente, tendo sido erro induzido inicialmente para outros fins.

A falsa representação da realidade pela vítima também pode assentar no que lhe foi dito por terceiros, ou que leu, ouviu ou viu, inclusive na comunicação social. Neste caso, é essencial que o agente do crime se aperceba da existência do erro sobre a sua identidade e mantenha esse engano para praticar actos sexuais de relevo. Não é necessário, que o agente do crime use uma isca em termos verbais ou visuais para enganar a vítima. Poderá simplesmente aproveitar-se de um erro que apenas partiu da vítima, e esse engano é essencial para que aquela pratique actos sexuais.

O erro tem que ser sério, no sentido de que atendendo às circunstancias concretas ambientais e da própria personalidade da vítima, o motivo invocado para o erro seja apto a distorcer a realidade, bem como que essa distorção seja a causa dos contactos sexuais. Deverá verificar-se esta causalidade.

Continuando e segundo a doutrina em referência, o único erro que releva é sobre a identidade pessoal do agente do crime. O erro sobre a identidade pessoal é o elemento típico essencial que autonomiza e legitima este crime.

Do ponto de vista social e vendo a questão noutro prisma, a fraude sexual, além das consequências nefastas, como é o caso de gravidez indesejada, sem menosprezar outras situações emergentes do acto e sua ilicitude, a responsabilização criminal nos parece muito branda, principalmente nos casos que envolve menores e maiores de idade interditos e devidamente declarados inabilitados. A inibição como pena acessória não resolve e muito menos atenua a situação. Seria mais prudente agravar a penalidade e aí sim, acessoriamente a inibição.

V – OUTRAS NUANCES SUBJACENTES A FRAUDE SEXUAL – A VÍTIMA

A vítima da fraude sexual, nisto permitam que abra um parêntese, para aquilo que é o conceito de vítima. E para o efeito, destacamos a obra do Prof. Carlos Alberto B. Burity da Silva, sobre VITIMOLOGIA – Melhor Atenção às Vítimas de Actos Delituosos – fazendo referência a conclusão do VII Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento ao Delinquente e sobre a definição na Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas, descreve o seguinte:

“Entende-se por vítima as pessoas que, individual ou colectivamente, tenham sofrido danos, incluindo lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, menosprezo substancial dos seus direitos fundamentais (…). Na expressão vítima incluem-se, em todo caso, os familiares ou pessoas a cargo que tenham relação imediata com a vítima directa e as pessoas que tenham sofrido danos ao intervir para assistir a vítima em perigo ou para prevenir a vitimização”.

No entanto, a vítima de fraude sexual, sofre indubitavelmente por todos os efeitos e consequências do acto praticado pelo agente, tanto por questões psicológicas e/ou emocionais, menosprezo e repulsa da sociedade com atribuição de adjectivos indesejáveis, quanto pela discriminação de vária ordem que se agudiza quando se trata do sexo feminino, sem menosprezo dos sofrimentos do sexo masculino, mas apenas para enfatizar a realidade.

Naturalmente, quando surge uma gravidez indesejada, nas circunstancias descritas acima, quem mais sofre é a mulher, independentemente da responsabilização criminal e civil do agente. Apesar de todo esforço que tem sido empenhado na prevenção e repreensão de actos ilícitos e sobretudo em matéria de crimes sexuais e para o caso concreto da fraude sexual, a impressão que se tem é da insuficiência de meios adequados e programas exequíveis e eficazes para a educação e ressocialização dos agentes. A realidade nos diz que, volta e meia o indivíduo (agente), anteriormente condenado por certa conduta, volta a ser tido como reincidente; ou seja, é condenado pela mesma prática ilícita. E, isto nos remete a reflexão sobre a eficácia das medidas e acções de prevenção, repreensão e ressocialização.

VI – CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

A reflexão sobre a problemática dos crimes sexuais e mormente a fraude sexual, sobre a qual nos propusemos a analisar, de tudo quanto foi descrito certamente servirá de base para discussões futuras no que diz respeito a penalidade, olhando para dinâmica dos fenômenos sociais e proliferação de práticas ilícitas. Tivemos em linha de conta alguns conceitos inerentes a reflexão em causa e, como não podia deixar de ser, fizemos referência do nosso ordenamento jurídico-penal e dele extraímos a definição possível do tipo de crime fraude sexual, como sendo o acto praticado por alguém que se aproveita de erro de outra pessoa ou que induza outra pessoa em erro sobre a sua identidade pessoal e assim praticar com ela acto sexual.

Para este tipo de crime e tendo em linha de conta a sua definição, o único erro que releva é sobre a identidade pessoal do agente do crime. O erro sobre a identidade pessoal é o elemento típico essencial que autonomiza e legitima este crime. É um crime a semelhança de outros crimes sexuais, que atenta contra a dignidade da pessoa humana e causa a vítima consequências sinistras, como por exemplo: questões psicológicas e/ou emocionais, menosprezo e repulsa da sociedade com atribuição de adjectivos indesejáveis, discriminação de vária ordem e principalmente quando se trata do sexo feminino, gravidez indesejada entre outras situações traumatizantes e irreversíveis.

Neste sentido, a questão da proteção da vítima cabe a inteira reflexão relacionada às matérias de direitos fundamentais inerentes a pessoa humana, quanto a violação das garantias individuais, dos direitos fundamentais devidamente consagrados na Constituição da República de Angola, na Carta Africanas dos Direitos do Homem e dos Povos, Convenção Internacional de Direitos Humanos e outros.

Se torna necessária, a revisão dos programas de educação e ressocialização dos agentes, mediante a um estudo aturado sobre a realidade actual, quanto a conduta do agente, o fenômeno da reincidência e que se adopte por medidas eficazes e eficientes nas acções de prevenção, repreensão e ressocialização.

VII – REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Código Penal Angolano
  • Constituição da República de Angola
  • Carta Africanas dos Direitos do Homem e dos Povos Convenção Internacional de Direitos Humanos
  • Jornal de Angola, última actualização online, de 13 de Novembro de 2017)
  • José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in. Crimes Sexuais, Análise Substantiva e Processual, 4.ª Ed.
  • Carlos Alberto B. Burity da Silva, in. VITIMOLOGIA – Melhor Atenção às Vítimas de Actos Delituosos

[1] Vd. José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in. Crimes sexuais, análise substantiva e processual, 4.ª Ed. Pág.136 e seguintes.

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